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Foto do escritorThayse Dules

O ABALO NA VIDA DO CUIDADOR AO LIDAR COM UM ENTE COM CÂNCER EM FASE FINAL

Atualizado: 18 de abr. de 2019

CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O LUTO, MELANCOLIA E O TRAUMA.


Thayse Maria Ferreira Dules (INAP - Instituto de Neuropsicologia Aplicada)

Fernanda Cristina Nunes Simião (UFAL - Universidade Federal de Alagoas - C. Arapiraca)


Introdução


O câncer é uma doença que tem uma representação estigmatizada, que acarreta uma carga emocional negativa. No corpo da pessoa ocorre um processo desarranjado do crescimento das células, o que leva a produção de uma grande quantidade de tecidos do corpo, formando tumores. Segundo Straub (2005), os tumores malignos (cancerosos) consistem de células renegadas que não respondem aos controles genéticos do corpo no que diz respeito a seu crescimento e divisão.

Essa doença tem um efeito arrebatador na pessoa, levando-a a ter que conviver com perdas: físicas, sociais, mudanças psicológicas e uma carga e abalo emocional desde o diagnóstico e durante todo o processo do tratamento. A complexidade desse processo não ocorre de forma unilateral, atinge também as pessoas que fazem parte da vida da pessoa neoplásica: a família (Carvalho e outros, 2003).

Segundo Sales, Almeida, Silva, Silva e Waidman (2011), há uma imposição de mudanças consideráveis na vida de pacientes e familiares depois do diagnóstico de câncer, exigindo uma reorganização na dinâmica da família que incorpore às atividades cotidianas os cuidados exigidos pela doença e pelo tratamento da doença.

Carvalho e outros (2003) afirma que as demandas colocadas às famílias se ampliam, uma vez que aumenta a dependência e a necessidade de cuidado dos pacientes. Dessa forma, a vida do familiar que cuida muda muitas vezes radicalmente devido à necessária atenção, pois o caminho do tratamento de câncer é doloroso, incerto, traz a iminência de morte e fragiliza os planos futuros, expondo o grupo familiar a uma doença considerada assustadora e a serviços de saúde que são desconhecidos e angustiantes, o que contribui mesmo que inconscientemente para o processo de luto (Lima, Bielemann, Schwartz, Viegas & Santos, 2012).

As doenças crônicas, como toda experiência humana, estão inseridas em uma produção subjetiva, social e individual (Rey, 2006). Desta forma, ser acometido por câncer, uma doença crônica cuja representação geralmente é a morte, devido ao grande número de óbitos causados por ela, nas mais variadas faixas etárias, faz com que o medo da perda esteja sempre bastante acentuado (Castro, 2010).

Além disso, as doenças associadas à morte quebram a temporalidade futura em que se apóia a segurança das pessoas, forçando estas a elaborarem vivências bastante angustiantes diante do processo de adoecimento: desde o diagnóstico, durante o tratamento, até a cura ou a morte (Rey, 2006).

Esta visão da sociedade em que a morte é encarada como tabu, em que os debates são considerados mórbidos, e a ideia de que a morte significa perder, faz com que doenças como o câncer sejam consideradas desumanas (Vasconcelos, Costa & Barbosa, 2008).

O fato de o câncer ser uma doença que gera certo desespero nas pessoas que foram acometidas por ele, como também nas pessoas que precisam ao menos lidar com a doença, seja como cuidador, seja como profissional de saúde, é devido ao fato de que os sentidos que são dados a essa doença já estão de alguma maneira pré-formados socialmente, e isso se deve tanto à construção histórica e cultural dessa doença, quanto à dificuldade inerente ao ser humano em ter que lidar com a perda, ou seja, com a facticidade da morte apesar de as perdas fazerem parte do desenvolvimento humano (Freitas, 2009).

Estudos como os de Lourenção, Santos Junior e Luiz (2009) mostram que o câncer, por ser uma doença crônica, exige múltiplos ajustes na vida da pessoa que é acometida pela doença, com evidências indicando que fatores físicos, emocionais, cognitivos, interpessoais e comportamentais estão inter-relacionados e contribuem para o ajustamento final observado em cada indivíduo.

Sem a possibilidade de cura, e à medida que a doença avança, os pacientes em estado terminal necessitam de cuidados paliativos.

As pesquisas que analisam as intervenções psicológicas em situações de morte são recentes e ainda escassas, mas alguns autores sugerem estratégias de suporte psicológico baseadas nos princípios dos cuidados paliativos, da qualidade de vida e do controle da dor. (Borges e outros, 2006, p. 362).

Esses cuidados se estendem também à família, no intuito de auxiliá-la no processo de elaboração do luto e aceitação do processo.

A morte de câncer geralmente está embebida de um sentido muito intenso, pois, como citam Carvalho e outros. (2003), existem tantas outras doenças que também podem ser fatais além do câncer; contudo, a impressão que temos é que as outras doenças “apenas” matam, mas o câncer “destrói”.

No entanto, o medo da terminalidade não extermina nenhum dos dois fatores, ou seja, nem elimina o medo nem a terminalidade em alguns casos. Pois o homem dificilmente irá encarar abertamente o seu fim, apenas eventualmente com certo temor é que cogitará a possibilidade de sua própria morte, fato que ocorrerá possivelmente ao se deparar com uma doença que ameaça sua vida (Carvalho e outros,2003).

O câncer fragiliza as pessoas acometidas por essa enfermidade, além dos seus cuidadores e familiares, é considerado uma das piores doenças, sendo extremamente temido e estando sempre associado à ideia de risco iminente de morte e ao temor de tratamentos agressivos e mutilantes.

Nesse sentido, segundo Kovács (2003), uma das coisas que impulsiona o homem a sua criação frenética é o terror diante da morte, de maneira que.

O homem está bipartido: ao mesmo tempo em que sabe de sua originalidade e poder de criação, reconhece sua finitude de forma racional e consciente. Vive toda a sua existência com a morte presente em seus sonhos, fantasias. Durante toda a sua existência, o ser humano tenta driblar esse saber, essa consciência, e age como se fosse imortal. (Kovács, 2003, p. 25).

No entanto, o câncer traz consigo a verdade irrefutável da não invencibilidade do homem, além da racionalização das suas fraquezas e limites na fase mais avançada da doença, também chamada de fase terminal, em que a pessoa se depara com a realidade de sua existência humana, a finitude.

É importante ressaltar que existem estudos como os de Silva e Hortale (2006) que destacam a dificuldade do sistema de saúde brasileiro em estruturar programas de cuidados ao final da vida, devido ao aumento da incidência de câncer no Brasil e ao ônus causado ao sistema de saúde. Essa visão dificulta, por vezes, a elaboração de programas que valorizem a importância de cuidar de uma pessoa até o seu último momento de vida.

Nesse estudo pretendemos entender como familiares que assumiram a responsabilidade de cuidar do seu ente em fase terminal enfrentaram situações inesperadas que implicaram em dor e sofrimento para todos os envolvidos, e de que forma os sentidos e sentimentos diante dessas experiências contribuíram para a elaboração do seu luto.

É importante entender que numa perspectiva psicanalítica, a morte está presente no nosso dia-a-dia mais do que possamos admitir, algumas vezes não nos permitimos trazer a consciência, mas ela abita dentro de nós e a reconhecemos diante de algumas facticidades de perda durante a nossa vida, diante dos mais variados tipos de perdas. Pois, vivenciamos perdas desde o nascimento, como, o rompimento da vida intra-uterina, a ruptura do cordão umbilical, o desmame, algumas relacionadas ao encerramento da infância, adolescência, vida adulta e velhice, a vida revela a morte a partir do próprio existir (Kovács, 2003).

A morte do outro nos traz a experiência de viver a morte em vida, pois quando estabelecemos vínculo com um ente que se foi é como se parte nossa também morresse (Fonseca, 2009). A morte é experimentada desde a ruptura dos primeiros vínculos, de forma que faz parte do desenrolar do ciclo da vida, faz parte do desenvolvimento humano.

Dessa forma o processo de luto se faz necessário diante das perdas cotidianas dos familiares que acompanham o seu ente com câncer, pois o luto não se refere tão somente a morte em si, mas as perdas impostas pelo adoecimento do seu ente. E a interrupção desse luto pode ser até prejudicial, já que é um processo inerente frente à perda de um objeto amado. A pessoa enlutada retira a libido anteriormente investida no objeto e a introjeta em seu próprio eu (Gonçalves, 2001).

A ruptura com o objeto perdido envolve sentidos e sentimentos que embalam esse desligamento, e que por vezes pode ser muito penoso e requerer tempo, de maneira que o ego esteja livre e permita a criação de um novo vínculo. A perda da pessoa com câncer, seja de forma simbólica ou real, traz consequências asestruturas psíquicas de toda a família (Fonseca, 2009). Pois, falar de morte na contemporaneidade, em que se predomina o sujeito ativo socialmente, produtivo, passa a ser complexo devido a dificuldade de lidar com o fator finitude humana.

Tanto para os familiares como para a pessoa com câncer, lidar com os elementos de perda que envolve todo o desenrolar da luta contra esta enfermidade culmina em diversos desajustes emocionais e psíquicos, e em se tratando da fase terminal da doença, cuja cura já não é possível para a medicina, a realidade da morte traz a angústia de saber que haverá uma ruptura com uma figura de ligação, ou seja, uma quebra de um vínculo afetivo (Zavaschi e outros, 2002).

O luto pode ser entendido como um movimento de passagem, que flui. Que compreende aspectos dolorosos bem marcados como, diminuição da autoestima, da capacidade de amar, desinteresse pelo mundo externo, por atividades anteriormente comuns, ou seja, o luto pode ser ainda entendido como uma travessia, em que se faz necessário passar pela sua história, seu passado, mergulhar em sua subjetividade e abrir caminhos para o futuro, sem perder a capacidade de amar a si mesmo, e não se entregando a melancolia, que toma rumos de pesar eternos (Cintra, 2011).

No entanto é importante que se amplie esta perspectiva de luto, pois diante da complexidade do ser humano seria muita pretensão acreditar que a subjetividade humana não acumularia tantos pesares proporcionados pelas perdas que o câncer oferece, de forma que entendemos que o luto é uma condição salutar necessária para o equilíbrio psíquico, mas que o trauma e a melancolia fazem parte do processo vital de algumas pessoas.

Assim entendemos que o trauma psíquico ocasionado pela perda de um ente querido pode gerar um choque emocional capaz de romper a barreira do ego e garantir perturbações significativas para a ordem psíquica do indivíduo, mas que a depender, pode tomar o rumo da reorganização e reelaboração do ego, ou mesmo o rumo de enclave que o impedirá de elaborar um equilíbrio salutar, como é no caso de uma melancolia (Zavaschi e outros, 2002).

Dessa forma, diante dos pressupostos da psicanálise pretendemos explorar o mundo inter e intrapsíquico dos participantes da pesquisa, de maneira a compreender, mais que explicar suas experiências diante das situações e condições viabilizadas pelo adoecer de câncer do seu ente e pela passagem da vida à morte.

Assim esse trabalho objetivou identificar as mudanças no cotidiano da vida dessas pessoas, quais experiências mais marcaram durante o processo de cuidados, as perdas mais significativas, além de discutir o papel do psicólogo no processo de acompanhamento das famílias durante os cuidados de pessoas com câncer, para que dessa forma pudéssemos compreender como se processa o luto, a melancolia e/ou trauma na vida dessas pessoas.


Materiais e Métodos


Este trabalho seguiu a perspectiva da pesquisa qualitativa, que, segundo Minayo, Deslandes e Gomes (2010), nos possibilita trabalhar com universo dos sentidos, significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Essa pesquisa teve como objetivo investigar, a partir das experiências vivenciadas por esses cuidadores diante da situação de ter um ente com câncer fora de possibilidades de cura, como se processa o luto a melancolia e/ou o trauma diante da morte do seu ente.

A pesquisa contou com cinco participantes, que acompanharam três casos de câncer, conforme a seguir apresentados. Trata-se de pessoas que passaram pela dor de ter vivenciado junto a um familiar o processo de diagnóstico de câncer, tratamento, fase terminal e morte. Os participantes são maiores de 18 anos, de ambos os sexos, que ao aceitarem participar desse estudo assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (T.C.L.E.). Tivemos acesso a esses participantes por meio de redes de conhecimento, onde ocorreu um processo de investigação das pessoas que atendiam as exigências supracitadas, além de atender também ao requisito de a facticidade da morte de seu ente já ter ocorrido a mais de um ano.

Nesse estudo foi realizada uma revisão da literatura sobre o tema e depois nos debruçamos sobre a produção dos dados da pesquisa através do procedimento da entrevista semiestruturada, pois este nos permitiu realizar algumas perguntas que direcionaram as pessoas da pesquisa a discorrer sobre o tema proposto e também nos deu a liberdade de elucidar ou explorar questões na fala da pessoa entrevistada através de perguntas adicionais (Boni & Quaresma, 2005).

Dessa forma, para permitir que a entrevista atendesse a proposta do estudo, mas não limitasse a fala dos participantes, utilizamos esse procedimento de maneira que possibilitasse às pessoas discorrerem sobre suas experiências, dando vazão aos sentidos e sentimentos tecidos no decorrer de suas vivências como cuidadoras junto a um familiar com câncer em fase terminal (Thiollent, 2000).

Por meio do roteiro da entrevista semiestruturada foi possível produzir os dados dessa pesquisa. As entrevistas foram audiogravadas e transcritas, com a autorização dos participantes da pesquisa, para serem análise. O material produzido nesse estudo foi analisado segundo o referencial teórico da psicanálise. Os participantes dessa pesquisa tiveram seus dados resguardados e os nomes expostos são fictícios.

Dessa forma, chamaremos a primeira participante de Júlia, casada, mãe de duas filhas, cursa o nível superior e tornou-se a cuidadora da sua avó, a qual foi diagnosticada com câncer de útero, com posterior metástase nos ossos. No primeiro diagnóstico o câncer foi tratado por quase um ano, mas quando parecia ter sido curado ele reapareceu nos ossos. A morte da avó de Júlia, a partir do segundo diagnóstico de câncer, foi em menos de dois meses. A participante acompanhou todo o processo de diagnóstico, tratamento, fase terminal e morte de sua avó, fazendose mais presente como cuidadora nos momentos finais do adoecimento.

Tivemos como participante, ainda, a mãe e a irmã, que chamaremos de Maria e Marta, de um homem diagnosticado com câncer de estômago em estágio avançado da doença. Maria é aposentada e Marta empresária, casada e mãe de dois filhos. Desde o diagnóstico de câncer de seu ente não havia prognóstico de cura real, pois ele já estava em fase terminal, no entanto, ele ainda viveu em tratamento durante quase três anos. Foram realizadas algumas sessões de quimioterapia e radioterapia e não havia possibilidade de cirurgia para retirada do tumor devido ao seu tamanho, o que indicava o estado avançado da doença. Essas duas mulheres foram as protagonistas no acompanhamento do tratamento e nos cuidados paliativos até o momento da morte de seu familiar.

Os dois últimos participantes da pesquisa foram a filha e o genro de uma mulher diagnosticada com câncer de útero, que chamaremos de Claudia e Carlos. Ambos entrevistados são empresários, casados e pais de três filhos. A mãe de Claudia recebeu o diagnóstico de cura depois de tratar o primeiro câncer. Contudo, depois que ela começou a sentir novamente algumas dores, ela foi examinada e os exames detectaram outro tumor na coluna, só que agora na coluna e em nível avançado. Desse modo, a mãe de Claudia recebeu o diagnóstico de fase terminal, o que a levou à morte em apenas um mês após esse diagnóstico. Assim, o casal acompanhou de perto todo o processo de diagnóstico, tratamento, fase terminal e morte.


Resultados e Discussões


O impacto na vida de quem cuidou de um familiar com câncer


O cotidiano de quem se torna um cuidador de uma pessoa com câncer muda bruscamente, pois ele participará da rotina de exames, consultas, tratamentos e cuidadosdiversos, que são constantes. Toda essa rotina passa a ser algo comum a todos que vivenciam e acompanham a realidade de quem adoce de câncer, inclusive em fase terminal.

Em decorrência disso, essas mudanças afetam concomitantemente os diversos âmbitos da vida desses cuidadores, gerando um impacto na rotina dessas pessoas. As alterações na qualidade de vida dos cuidadores, como não poderem trabalhar, dormir ou realizar as atividades do dia-a-dia, implicam na desestrutura da ordem natural das coisas (Muniz, Zago & Schwartz, 2009).

As novas condições de vida dos cuidadores, que são estabelecidas pelo câncer, geram aflição, tristeza, angústia, ansiedade e desconsolo. Isso fica evidente nas falas que seguem a baixo:


- Maria:eu ficava ali com ele, pelejava o dia inteiro, cozinhando ali pra ele [...] eu dormia na cadeira e ia adormecendo e me acordando, o tempo todo, porque ele reclamava de muitas dores, mesmo tomando a morfina.


- Marta: mudou tudo, tudo na vida da gente mudou... nós deixamos tudo pra cuidar dele, até trabalhar eu não trabalhava mais, quando o telefone tocava que eu não estava com ele, eu pensava logo que ele tinha morrido, eu estava mais satisfeita quando eu estava lá com ele, cuidando dele, eu sempre estava com ele pra dar massagem nele, pra conversa com ele.


Nesse sentido, pretendemos refletir sobre como o câncer motiva mudanças e gera impactos na vida não somente de quem sofre com a doença, mas também de quem lhe tece cuidados, pois entendemos que o adoecimento é gerador de desarmonia em todos os aspectos da vida de uma pessoa, inclusive na vida de seu cuidador, conforme os relatos a seguir.


- Carlos: [...] eu ia pra Maceió com elas (Claudia e sogra com câncer) as cinco horas da manhã e esperava o tratamento e voltava [...] mexeu porque alguém tinha que fazer alguma coisa, e todo mundo da família ajudou, todos de alguma forma, da maneira que pode [...] mas ela (Claudia) estava aqui, parou os trabalhos, que ela costurava, parou tudo [...] quem cuidou cem por cento foi ela, ela quem botou a vela na mão dela (sogra com câncer), ela (sogra) morreu nas mãos dela (Claudia) [...] na época eu cuidei como se fosse mãe, eu senti demais, eu imagino pra ela (Claudia) como não foi [...] é muito doloroso.


- Júlia: ninguém tinha vida. Assim, tem festa pra ir, ninguém ia, todo mundo, todo dia, estávamos na casa dela (avó com câncer) independente do que você tinha pra fazer, casa, faculdade, qualquer coisa, mas a gente tinha que ir pra casa dela, tipo, final de semana, é meu final de semana de cuidar, então eu não vou sair, vou ficar na casa dela (avó com câncer). E eu pensava, poxa, a pessoa que tomou conta tanto tempo de mim daqui a pouco não vai estar mais aqui. Daqui uns dias essa pessoa não vai estar mais aqui, então eu vou ter que fazer o que eu puder por ela agora... Você não tinha cabeça pra pensar, eu ia pra faculdade, tinha uma prova, eu não estudava, o professor dava aula, mas eu não conseguia prestar atenção, porque eu ficava pensado na hora de ir cuidar dela. Abdiquei de fazer qualquer coisa pra minha filha porque era dia de ficar com ela, tinha que cuidar dela, tinha supermercado pra fazer, tinha alguma coisa pra fazer, mas eu não podia porque eu tenho que passar lá pra cuidar dela, tinha logo que ver ela, era um dever passar os últimos dias com ela.


Por intermédio dessas falas foi possível vislumbrar o que já havia sido discutido nesse estudo outrora: as mudanças severas causadas na vida dos cuidadores, geradas pelo adoecimento do seu ente, a mudança na rotina e o abandono de algumas atividades importantes se fizeram necessários para que o enfrentamento da doença e os cuidados ao seu ente com câncer pudessem ser priorizados, gerando ansiedade e sofrimento aos familiares.


- Carlos: pra mim que vivenciei foi um momento angustiante [...] você vê um ente querido seu morrendo ao poucos, é um sentimento de tristeza muito grande.


- Marta: a tristeza era grande porque a gente já sabia que iria perdê-lo (irmão com câncer). Já era um sentimento de perda.


É importante destacar que esses abalos, essas pequenas perdas que se estabelecem durante o processo de cuidados à pessoa com câncer podem desencadear alguns sentimentos que podem levar a um processo de enlutamento (Kovács, 2003).


O diagnóstico de fase terminal


A fase terminal é um agravo clínico com causas bastante definidas. Geralmente é causionada por uma doença em estado avançado, ou em estado progressivo ou incurável. Nessa fase, há uma baixa possibilidade de responder ao tratamento específico e, geralmente, é acompanhada de diversos problemas ou sintomas crônicos, múltiplos, multifatoriais e alternantes. É caracterizada também pela iminência de morte real, ou seja, quando se está fora das possibilidades de cura e se tem um prognóstico de vida muito curto (Müller, Scortegagna & Moussalle, 2011).

Contudo, a fase terminal vai além dessas características definidas anteriormente, visto que esse estado acarreta em um ponto central do tratamento: a morte, a finitude. O que antes parecia estar presente, mas era evitado a todo custo, agora passa a ser um fato, a ideia da batalha perdida passa a se concretizar. Com isso, o diagnóstico do estado terminal gera sentidos e sentimentos bem marcados, presentes, por exemplo, nas falas do casal Carlos e Claudia:


- Carlos: Pra mim que vivenciei foi um momento angustiante, eu entrava aqui, ela (sogra com câncer) estava deitada no sofá, aí eu passava a mão na cabeça dela, aí você vê um ente querido seu morrendo aos poucos, é um sentimento de tristeza muito grande, porque você vê a pessoa ali, com o coração batendo, com os olhos abertos e você sabe que já perdeu ela, você está com a pessoa ali, mas você já perdeu, infelizmente, ela tá ali e você ter que mandar já construir a catacumba, ela viva aqui, mas se não tivesse construído a catacumba não tinha aonde colocar, só deu tempo terminar, quando eu estava terminando a catacumba ela faleceu, é um sentimento de perda tão grande, mas você tinha que agir com razão, aí eu disse „pessoal, infelizmente não da pra esperar não, a situação dela está séria‟ [...] aí foi quando começou a construir, era ela aqui no velório e o pessoal construindo, é uma situação que [...] quem já passou por isso é uma situação delicada [...].


- Júlia: Nem sei dizer, o sentimento era de desespero, de impotência, como o meu tio, ele perguntou lá a médica se ele vendesse a casa dele resolveria o problema, e a médica disse que infelizmente não, era uma situação de impotência, a gente poderia vender tudo pra fazer o tratamento, mas, mesmo assim, não ia ter condições, você quer fazer, mas você não tem poder nenhum sobre aquilo.


Para a família, a dificuldade de lidar com essa situação muitas vezes culmina em sentimentos de impotência, ansiedade e incertezas, gerando inúmeras preocupações, como o fato de não saber como agir diante da situação de finitude do seu ente (Carvalho, 2008). Esses elementos compõem um processo que culminará em luto, melancolia ou trauma, pois embora os sentimentos e sensações sejam similares, a forma como cada pessoa irá reorganizar ou reelaborar o seu ego é muito particular.


Considerações Finais



O câncer é uma doença que atualmente é considerado um problema mundial. Como foi discutido ao longo do trabalho, sua representação e sentidos vêm sendo tecidos de forma estigmatizada devido às diversas maneiras como a doença atinge as pessoas, provocando inúmeros sofrimentos e dores nos mais diversos âmbitos da vida tanto das pessoas acometidas pela doença quanto de seus familiares (Menezes, Passareli, Drude, Santos e Valle, 2010). Assim, as perdas são constantes desde o diagnóstico. O cuidador que lidou com um ente com câncer em fase terminal teve que compreender as diversas necessidades dessa pessoa, e certamente não foi uma tarefa fácil, como pudemos compreender a partir das falas das pessoas que participaram do nosso estudo. Esses cuidadores tiveram que lidar inclusive com os sentimentos que se configuravam ao experienciarem cada momento difícil, a cada fracasso, com os avanços e retrocessos, a cada mudança ao lado de seu familiar, atribuindo sentidos a todos esses momentos vivenciados.

Faz-se importante, a partir desse estudo, que entendamos que o processo de luto pode tomar alguns rumos, o salutar e o neurótico. A maneira psicodinâmica a qual está descrita as falas das pessoas que participaram desse estudo, nos permite compreender como se organiza o relacionamento do ego com seus objetos, neste caso mais especificamente com essas pessoas processaram as diversas mortes ocorridas durante o período de cuidados de seus entes com câncer.

Aqueles que durante o enlutamento nas suas relações com o objeto amado predominou a culpa e a depressão certamente terá mais probabilidade de romper com a barreira do ego e gerar algumas perturbações que dificultará a evolução saudável do ego, ocasionando uma melancolia, abrindo caminhos para inúmeras patologias, mas se mesmo passando por esse processo conseguir tomar rumos de reorganização e reequilíbrio, deixando o trauma (que também gera patologias) para traz possivelmente se permitirá desenvolver um equilíbrio salutar. O luto é um processo saudável, pois, embora existam sentimentos, e sensações bem definidos presentes nos três processos, o luto flui, de forma saudável, de maneira que é possível operar efetivamente uma projeção em outro objeto amado.

Referências


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As autoras:


Thayse Maria Ferreira Dules possui graduação em Psicologia, Especialização em Psicopatologia e Especialização em Neuropsicologia Clinica. E.mail: thaysedules@gmail.com


Fernanda Cristina Nunes Simião possui graduação e licenciatura e mestrado em Psicologia. Atualmente é professora efetiva do curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Polo Palmeira dos Índios. E.mail: fernandasimiao@gmail.com



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